Nos últimos anos, a imprensa nacional tratou do tema do
infanticídio entre os povos indígenas no Brasil em vários momentos. As
notícias divulgaram que o infanticídio seria prática recorrente entre 12
dos mais de 220 povos indígenas no país. Muitas notícias veicularam
também a proposta de um projeto de lei que trata da obrigatoriedade de
intervenção do Estado em realidades onde se supõe que o infanticídio
ocorra: o Projeto de Lei nº 1057, do deputado Henrique Afonso (PT-AC),
conhecido como Lei Muwaji. O Projeto de Lei Muwaji, apesar de pretender
olhar para o futuro na defesa dos direitos humanos, está preso aos
preconceitos vigentes. Parte de premissas equivocadas e preconceituosas
em relação ao tratamento concedido às crianças indígenas por distintos
povos. O tema do infanticídio carece de dados confiáveis, seja sobre a
incidência, seja em relação aos povos que recorreriam a tal prática e,
ainda, sob que circunstâncias. Sabe-se que o infanticídio é praticamente
inexistente no Brasil. A literatura etnológica indica que as crianças
indígenas gozam de atenção da comunidade e os pais acompanham
cuidadosamente as fases de desenvolvimento dos filhos, observando ritos
de passagem e buscando diuturnamente o bem-estar de crianças e jovens. O
PL, diferentemente do que afirmam os especialistas, parte do
pressuposto de que os ambientes familiares indígenas são bárbaros, ao se
referir genericamente à existência de práticas “atentatórias” ou
“nocivas” à vida das crianças. Ao consagrar no texto da lei a infundada
suspeita de que os índios são cruéis com suas crianças, contribui para
criminalizar e desmoralizar, antes que qualquer investigação, os povos
indígenas perante à opinião pública. Ao enfocar exclusivamente os povos
indígenas, o PL ofusca o fato de que práticas afins ao “infanticídio”
ocorrem em maior número e sem sanção na moderna sociedade industrial — e
desigual — em que vivemos. Nos EUA, por exemplo, cerca de 1 milhão de
bebês são vítimas de maus tratos todos os anos e não menos de 20% morrem
em virtude disso. Milhares de crianças não indígenas são maltratadas e
mortas no Brasil: de duas a seis são assassinadas por dia na cidade do
Rio de Janeiro e um número escandaloso morre por falta de alimentação e
cuidados médicos. Não se trata, assim, de ser pró ou contra o
infanticídio entre indígenas, até porque atos condenáveis não são normas
sociais. A questão é como assegurar o respeito às tradições culturais
dos povos indígenas, de modo que crianças e jovens possam continuar a
gozar de tratamento adequado, diferente do tratamento, por vezes cruel,
desumano e degradante que dispensamos às nossas crianças. Assim,
aprendemos algo com os povos indígenas. A criminalização de práticas
indígenas e o incentivo à denúncia propostos pelo PL não promove o
estímulo construtivo à reflexão sobre práticas que todos consideramos
abomináveis. O PL, da forma como se apresenta, usurpa dos povos
indígenas o direito e a liberdade de negociar os dissensos por meio de
deliberações internas autônomas. Sabe-se que em toda sociedade os
valores são construídos socialmente. Muitas sociedades que no passado
fizeram uso de práticas como o infanticídio, hoje, não o fazem. A
circulação de novos valores promovida pelo movimento de mulheres
indígenas e os encontros de lideranças indígenas tem contribuído de modo
decisivo para as escolhas que os povos indígenas fazem para suas vidas.
As declarações internacionais das quais o Brasil é signatário foram
concebidas para humanizar as relações sociais e não para servir como
instrumento de intervenção em nome de uma suposta superioridade moral.
Cabe, assim, ao Estado de Direito proteger os povos indígenas para que
tenham o direito de existir como sociedades diversas, conforme prevê a
Constituição de 1988 em vigor. Pela Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da ONU sobre os Direitos
dos Povos Indígenas, quaisquer documentos ou ações que interfiram na
vida dos povos indígenas carece de consulta aos interessados, portanto
que se proceda a consulta, pois ela é um direito. Importa notar, por
fim, que enquanto esse PL tramita, muitas crianças indígenas são
retiradas de suas comunidades por meio de um círculo de adoção à
distância via internet, não regulamentado (ver sítios http://www.hakini.org/ ou http://www.vozpelavida.org/).
Não é exagero supor que muitas pessoas, por desinformação ou
preconceito, considerem que crianças indígenas viveriam melhor fora de
suas aldeias. Como tais sítios são alimentados? Quem controlará o
tráfico humano que tais práticas induzem? Quem são essas crianças, suas
origens e trajetórias? São algumas perguntas que precisam ser
respondidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), pelo Ministério
Público e outras instituições, antes que o Congresso Nacional aprove
leis intrusivas e criminalizantes. Arquivar o projeto e ouvir os povos
indígenas seria a prática democrática recomendável num Brasil que se
pretende plural.
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