quinta-feira, 13 de junho de 2013

Sayonara(QUARAÍ-RS) - EDUCAÇÃO - A CRÔNICA E O ESTILO HUMORÍSTICO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO





A CRÔNICA E O ESTILO HUMORÍSTICO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO


Continuação da publicação anterior:


1 A CRÔNICA: SUA HISTÓRIA E SINGULARIDAS A UM GÊNERO CONSIDERADO BRASILEIRO


A palavra crônica vem do grego khronos, que significa tempo. Em português, ela possui vários significados, e todos mostram sua relação com a idéia de tempo. Como gênero literário, a crônica tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo” explica Arrigucci Jr. (1987, p. 51). Assim, ela nos permite voltar ao presente com naturalidade ao narrar fatos, uma das marcas de nossa relação com a humanidade.1

Lembrar e contar fatos, além de resgatar a história, são atitudes comuns ao homem. Por isso, na crônica, o assunto não é a questão de maior importância. Ele pode ser político, esportivo ou a violência nas relações sociais. O que lhe interessa é a brevidade do instante, os pequenos momentos da condição humana talvez porque “A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando.” como afirmava Walter Benjamin (1980, p. 57).

A crônica sempre se prende à atualidade, embora não exclua a nostalgia do passado. Ela nos faz pensar sobre os mais diversos temas até os corriqueiros que, muitas vezes, escapam aos nossos olhos. Esses aspectos nos levam a recorrer à mitologia clássica, para entendê-la. Assim recordemos o mito de Cronos:


O deus Cronos, filho de Urano (o Céu) e Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã Réia.Urano e Gaia, conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por sua vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização da profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união com Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido, dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E, assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado. E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os irmãos. (LAURITO, 1993, p.10).

Cronos é a personificação do tempo e podemos entendê-lo como uma alegoria representativa do: a) tempo em sua passagem fatal, engolindo tudo o que é criado e tudo o que é criatura. b) tempo que, ao devolver algo não é mais o original, mas uma lembrança, uma releitura. c) tempo que preserva tudo o que há de mais importante para o ser humano e se configura como memória.

Um fator importante para que a crônica seja um gênero de leitura atraente é a sedução, que é entendida neste texto como “o conjunto de qualidades que despertam em outrem simpatia, desejo, interesse etc.” (HOUAISS, 2001, p. 2534). Mas o valor da crônica depende da sutileza e do talento do cronista, diz Eduardo Portella (1979, p.54):

O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista.

Como bem enfatizou Portella (1979), personagens e espaços reais, na boa crônica, se transformam em espaços ficcionais, em histórias que aprisionam a atenção do leitor. Este percebe que o autor transforma em ficção o que antes era apenas um fato histórico. É o que diz Margarida de Souza Neves (1992), em seu artigo Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas, quando fala do espírito do tempo, presente na crônica, mostrando a interação entre ficção e história.

No entanto, para o período que nos ocupa, a crônica aparece como portadora por excelência do ‘espírito do tempo’, por suas características formais como por seu conteúdo, pela relação que nela se instaura necessariamente entre ficção e história, pelos aspectos aparentemente casuais do cotidiano, que registra e reconstrói, pela complexa trama de tensões e relações sociais que através delas é possível perceber. Pela ‘cumplicidade lúdica’ enfim, que estabelece entre autor e possível leitor no momento de sua escrita e que parece reproduzir-se entre historiador e o tempo perdido em busca do qual arriscamos nossas interpretações, ainda que sempre ancorados em nosso tempo vivido (NEVES, 1992, p. 82).

Ao pesquisar sobre o gênero crônica, percebemos a vinculação entre os fatos narrados e o conceito de cronologia, isto é, percebemos que os assuntos tratados obedecem a uma relação tempo/espaço. E isso se deve à própria etimologia da palavra que dá nome ao gênero. Essa estreita relação entre os termos crônica e tempo não pode ser negligenciada quando pretendemos demonstrar que a crônica atual é o produto evoluído de um gênero outrora já experimentado. Os primeiros cronistas portugueses prendiam-se à observação e ao registro dos fatos. Estavam preocupados com a história objetiva, vinculando o tempo à memória. Nos dias atuais, a subjetividade do cronista é a maior característica desse gênero, porém o tempo continua presente, só que agora o tempo é aquele vivido também pelo cronista e dominado por suas impressões e expectativas.

A idéia de tempo está presente não apenas na etimologia da palavra crônica, mas continua a perpetuar-se em todas as suas modalidades, conforme afirma Davi Arrigucci Jr. (1987, p.51):

São vários os significados da palavra crônica. Todos, porém implicam a noção de tempo, presente no próprio termo, que procede do grego chronos. Um leitor atual pode não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela uma forma do tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada. Mas a crônica sempre tece a continuidade do gesto na tela do tempo (grito do autor). (ARRIGUCCI, 1987, p. 51).

O tempo também pode aparecer na crônica como um rival do cronista, que briga com as horas para cumprir a data de entrega do seu texto para o jornal, ou na eterna luta contra a falta de assunto, quando a rotina quer esmagar a criatividade e as palavras somem. Não ter o que dizer pode levar o cronista a refletir sobre o próprio gênero e a produzir textos metalingüísticos. Luís Fernando Veríssimo em sua metacrônica diz:

A discussão sobre o que é crônica é que ela é quase tão antiga quanto aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é crônica, conto ou outra coisa interessa aos estudiosos da literatura, assim como se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha interessa a zoólogos, geneticistas historiadores e (suponho) ao galo, mas não deve preocupar nem o produtor nem o consumidor. Nem a mim nem a você. (VERISSIMO, 1995).

Este é um tema que percorre a obra de muitos cronistas brasileiros, tentando, talvez, dar respeitabilidade e importância a esse gênero, que, segundo Antonio Candido, é um gênero menor. Lembrando que grande parte desses escritores tem na crônica um meio de subsistência.

Em 14/03/1972, no Jornal da Tarde, o repórter José Márcio Mendonça escreveu o texto Adeus cronista, onde pergunta a vários cronistas: - Por que, por volta de 1965, a crônica perde pouco a pouco o espaço nos jornais? Escritores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Raquel de Queirós e Nelson Rodrigues, em seus depoimentos, falam sobre suas atividades de cronistas e sobre como o tempo é cruel com eles. O texto mostra que a crônica está morrendo de cansaço, e desde 1965, se constatam os sintomas de sua agonia. Cita também vários cronistas que revelam o cansaço deste gênero.

Entre eles estão Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, que por muito tempo foram mais conhecidos como cronistas do que como poetas e, hoje, são considerados poetas que escrevem crônicas. Clarice Lispector, por sua vez, declara que escreve para os jornais apenas para ganhar dinheiro e que não é cronista.

Segundo essa perspectiva, podemos dizer que os cronistas atuais vivem momentos de conflitos pessoais:

Estão todos desiludidos, irritados ou simplesmente desinteressados. Alguns deles desde Rubem Braga, considerado o maior e o melhor, o verdadeiro pai da crônica moderna no Brasil, até Clarice Lispector, ‘ que escreve por dinheiro’ – explicam porque a crônica caiu de moda. Ou porque, como prefere Nélson Rodrigues, ‘alguns cronistas estão perdendo leitores’ Houve um abuso, um excesso, crônicas demais, colunistas demais e enjoou. (MENDONÇA, 1972).

Entretanto, é fácil discordar do texto de José Márcio Mendonça, uma vez que hoje a crônica voltou a ter um espaço cada vez maior nos jornais, pois praticamente, em cada seção, há a coluna do cronista. O jornal Folha de São Paulo, por exemplo, conta com nomes importantes da literatura como: Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar, entre outros. Confirmando sua importância no panorama da literatura brasileira, observamos que a crônica tem sido companheira de milhares de leitores e contribuiu para a consagração de vários escritores brasileiros ao longo de sua história. A prova disso é que, desde o século XIX, as melhores crônicas têm sido reunidas em livros, pouco tempo após sua publicação nos jornais. Luís Fernando Veríssimo, que escreve uma coluna para o jornal Estado de São Paulo, é um dos exemplos de que a crônica é um dos gêneros que conta, no Brasil, com maior número de leitores. Seus livros de crônicas são campeões de venda no Brasil, e já foram traduzidos para vários idiomas.

A internet utiliza as crônicas de incontáveis escritores nas mensagens por e-mail e como apoio para vários sites que precisam de textos curtos, numa linguagem acessível para o leitor, permitindo veicular mensagens, através de blogs, comunidades como o orkut etc. Trata-se, portanto, de textos que não são outra coisa que pequenas crônicas disfarçadas.

A televisão, o cinema e o teatro brasileiros também recorrem ao universo cronístico. Programas de TV como Os normais e A grande família, veiculados pela TV Globo, são seleções de cenas sobre o cotidiano da família e sua relação com os problemas do mundo contemporâneo. Tais programas são herdeiros da Comédia da vida privada, de Luís Fernando Veríssimo, que teve seu programa homônimo, veiculado pela TV Globo. O livro As mentiras que os homens contam virou peça de teatro, com sucesso de público por mais de dois anos, saindo de cartaz em dezembro de 2005, encerrando sua temporada no Teatro das Artes em São Paulo e voltou no segundo semestre de 2006. Assim também ocorreu com os filmes: Bossa Nova, Copacabana, Pequeno dicionário amoroso, e a lista é grande. O exemplo maior no momento é o novo filme de Nelson Pereira dos Santos, Brasília 18%, definido como “crônicas de Brasília”.

Em relação aos gêneros, segundo Afrânio Coutinho (2004), os gêneros literários podem ser divididos em dois grupos: 1) aquele no qual os autores se dirigem ao leitor usando um método direto, há uma explanação direta das opiniões do autor, dirigindo-se em seu próprio nome ao leitor ou ouvinte. A esse grupo pertencem: o ensaio, a crônica, o discurso, a carta, o apólogo, a máxima, o diálogo, as memórias. 2) aquele em que os autores usam o método indireto e artifícios intermediários. Conforme o artifício intermediário, a esse grupo pertence: o gênero narrativo, epopéia, romance, novela, conto; o gênero lírico e o gênero dramático.

A crônica sofreu diversas modificações ao longo dos últimos séculos. Ela se ajusta ao primeiro grupo, mas seu caráter hibrido faz com que caiba no segundo grupo por sua natureza poética, reflexiva e humorística. Como gênero histórico foi cultivada durante a Idade Média e o Renascimento, em toda a Europa, começando aí seu processo de hibridização. A crônica histórica foi também denominada cronicão.

As cronições, de acordo com a pesquisa realizada no site: http://rosabe.sites.uol.com.br/trovad.htm, em julho de 2007, são os primeiros testemunhos de uma historiografia em língua portuguesa, são relatos cronológicos dos reinados dos diferentes monarcas, elaborados com a intenção primordial de dar a conhecer quais os territórios que haviam sido atribuídos aos nobres. Sua importância é, portanto, histórica.

Mais significativos do ponto de vista literário, são os livros de linhagem. Trata-se de registros genealógicos das famílias nobres, dos quais constavam também narrativas de feitos de alguns dos seus familiares mais destacados. No fundo são relatos históricos transmitidos na perspectiva da nobreza, utilizando recursos da ficção, com o objetivo de engrandecer a família retratada. Esses episódios ficcionais consistiam, por vezes, na descrição de lendas, em que os feitos heróicos eram atribuídos a membros da família em questão. Por esse enfoque, percebe-se que o conteúdo histórico se dilui, prevalecendo o aspecto literário.

Uma compilação literária e sociologicamente considerada mais válida foi a Crônica Geral de 1344, que resultou do empenho de Afonso X de Castela. Ao estimular o registro escrito de lendas e tradições oralmente passadas de geração em geração, ele fez acentuar ainda mais o pendor cultural da corte de Toledo, já conhecida como um grande centro de divulgação da poesia trovadoresca.

Em Portugal, é o rei D. Duarte que vai dar o primeiro grande passo na criação de uma verdadeira historiografia, quando, no ano da sua subida ao trono (1434), decide incumbir Fernão Lopes (1380 – 1459), o guarda-mor da Torre do Tombo e escrivão de D. João I, de elaborar as histórias dos últimos reis que o tinham antecedido. Desse modo, encarrega-o de redigir as crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Fernão Lopes desempenha essa tarefa com um brilho literário e um rigor histórico impressionante.

Usando uma linguagem em que o movimento, a visualidade e a coloquialidade combinam com a dramaticidade dos eventos narrados, o primeiro historiador português mostra grande preocupação com a consulta de documentos, elaborando textos em que a imparcialidade e o espírito de independência dominam os fatos mencionados. As grandes transformações sociais e políticas são, para Fernão Lopes, obra do povo e não dos monarcas ou dos nobres, e ele crítica os governantes como, por exemplo, D. João I, pai do monarca, que lhe havia concedido o posto de cronista-mor do reino.

Na atualidade, temos Luís Fernando Veríssimo com sua obra A velhinha de Taubaté, aquela que sempre acreditou nas boas intenções dos nossos governantes, mas não agüentou os fatos recentes da política atual e morreu. Assim, vemos que as características principais da crônica continuam fazendo parte da sua estrutura, pois o cronista tem um compromisso com a verdade, trazendo a crítica e a reflexão para o texto.

Os sucessores de Fernão Lopes, empenhados em dar continuidade à tarefa de redigir uma história de Portugal a partir dos acontecimentos ocorridos nos vários reinados, afastar-se-ão, porém, de seu rigor investigativo, optando por uma visão mais sentimental da realidade histórico-social.

Gomes Eanes de Azurara (1410 -1474) foi o primeiro sucessor de Fernão Lopes, quer como guarda-mor da Torre do Tombo, quer como cronista. Coube a ele relatar os primeiros tempos da expansão portuguesa, especialmente no que se refere as investidas em regiões do norte da África. Tratando-se de acontecimentos ocorridos durante seu tempo de vida, recorreu com freqüência a testemunhos orais, adaptando-os posteriormente ao seu registro literário, que foi menos "colorido" e mais artificial do que o do seu antecessor.

Rui de Pina (1440-1521), sucessor de Azurara, encarregou-se de escrever as crônicas de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D Dinis, D. Afonso IV (reis da primeira dinastia, cujos feitos ainda não haviam sido registrados com o método que a elaboração de uma crônica requer) e ainda de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II. Foi também o primeiro historiador dos Descobrimentos, transmitindo o que pode definir-se como uma visão oficial dos acontecimentos.

Outro herdeiro de Fernão Lopes foi Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, que expõe, em carta ao rei D. Manuel, os acontecimentos da viagem do Descobrimento. Nesse relato, os fatos são registrados na ordem de sua sucessão, sem interpretação de suas causas e conseqüências.

O gênero crônica passou por diversas transformações. Primeiro, foram os cronições, que, com o seu caráter de relato histórico, percorrem a Idade Média e o Renascimento, em todas as partes da Europa. No princípio, eram escritos em latim e, depois, nas línguas vulgares. Talvez venha daí o estilo coloquial próprio da crônica moderna. O cronista moderno não é mais o narrador de fatos e feitos históricos. Sem a intenção de ficar, como comenta Walter Benjamim (1996), ele passa a escrever o corriqueiro. Em meados do século XIX, com o Romantismo e o desenvolvimento da imprensa, a crônica transforma-se num novo tipo de relato.

Passa a ser uma seção de comentários dos acontecimentos marcantes da semana, importando menos o fato em si e muito mais as considerações do cronista, sendo ele alguém que se dedica ao jornalismo, oscilando entre o jornalismo e a literatura.

Paulo Barreto, conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, deu à crônica o caráter social. Foi o iniciador da crônica urbana, procurava apreender o espaço e o tempo na sua multiplicidade, denunciando o conflito social advindo do impacto da modernidade, indo até as ruas para assistir ao espetáculo do cotidiano. A partir de 1945, o cronista passa a ser um escritor profissional, pago para trabalhar com os fatos históricos do cotidiano.

A crônica tem por base uma narrativa curta ou condensada, que capta fragmentos da vida, podendo ser pitoresca, atual, real ou até mesmo imaginária. Dotada de ampla variedade temática e num tom poético, embora coloquial, próprio da linguagem oral, assume ares literários e resiste ao tempo.
Alguns teóricos da literatura brasileira propuseram classificações para a crônica, destacando nela a mistura de gêneros, a hibridização. Eis primeiramente a classificação apresentada por Afrânio Coutinho (1967, p. 97):

a) crônica narrativa, cujo eixo é uma história, o que a aproxima do conto, sobretudo entre os contemporâneos quando o conto se dissolveu perdendo as tradicionais características do começo meio e fim. Os exemplos típicos são Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo.

b) crônica metafísica, constituí
da de reflexões mais ou menos filosóficas, abordando acontecimentos do cotidiano, como a crônica de 11/10/1885 de Machado de Assis (Balas de Estalo –Lélio).
c) crônica poema-em-prosa, de conteúdo lírico, que se manifesta como extravasamento do mundo íntimo do artista diante do espetáculo da vida, das paisagens ou episódios para ele carregados de significado, como o faz Rubem Alves. Em 05/09/ 1884, em Balas de Estalo, Machado de Assis faz uma releitura (paródia) da Canção do exílio, Gonçalves Dias. Portanto, parte de um poema, mas a ironia é seu aspecto mais forte.
d) crônica-comentário dos acontecimentos, que aborda qualquer assunto, acumulando muita coisa diferente ou díspar, como também faz Machado de Assis.
e) crônica-informação, mais próxima do sentido etimológico, divulga fatos, compondo sobre eles comentários rápidos. Aproxima-se do tipo anterior, porém menos pessoal.
Para Massaud Moisés (2001, p.110), a crônica divide-se em duas categorias fundamentais:
a) crônica-poema: explora a temática do eu, resulta de o eu ser o assunto e o narrador a um só tempo, precisamente como ocorre em todo ato poético.
b) crônica-conto: tem a ênfase posta no não-eu, no acontecimento que provocou a atenção do autor.
Além disso, o autor chama de pseudocrônica os textos que, a seu ver, mais se aproximam de ensaios ou da prosa didática, onde a idéia prevalece sobre a sensação e a emoção. Moisés recorre também a Carlos Drummond de Andrade, que resgata o monodiálogo como característica da crônica, e explica:

(...) monólogo enquanto auto-reflexão, diálogo enquanto projeção, a crônica seria, estendendo o vocábulo que Carlos Drummond de Andrade utiliza na designação do processo de relação verbal com o interlocutor, para o texto na sua totalidade – um monodiálogo. Simultaneamente monólogo e diálogo, a crônica seria uma peça teatral em um ato superligeiro, tendo como protagonista sempre o mesmo figurante, ainda quando outras personagens interviessem. O cronista, em monodiálogo, se oferece em espetáculo ao leitor, conduzindo-o por uma secreta afinidade eletiva. (MOISÉS, 2001, p. 117).

As classificações apresentadas por Afrânio Coutinho e Massaud Moisés, porém, servem apenas como norteadoras para o pesquisador, já que o gênero continua a apresentar limites bastante imprecisos.

Embora os textos dos primeiros cronistas fossem manuscritos, como a Carta de Pero Vaz de Caminha, hoje costumamos associar o termo crônica a seu suporte por excelência, o jornal ( apesar de haver outros , como: blogs, e -mail, orkut etc).
A história da crônica no Brasil, enquanto gênero jornalístico, confunde-se com a própria trajetória do jornalismo contemporâneo. Vinculada ao entretenimento, ela começou a consolidar-se em nosso país em meados do século XIX e, desde então, tornou-se um gênero quase obrigatório para os jornais brasileiros.
Os caminhos da crônica e do jornal começaram a se cruzar na França do século XIX, quando a imprensa jornalística experimentava grande avanço, devido a inovações tecnológicas que barateavam a produção em larga escala de periódicos. Foi nesse período que nasceu o folhetim, do qual se origina a crônica atual.
Segundo Marlyse Meyer (1993, p. 10):

De início, ou seja, começo do século XIX, le feuilleton designa um lugar específico do jornal: o rez-de-chaussée – rodapé, o rés-do-chão – geralmente o da primeira página. Tinha uma finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao entretenimento. E pode-se já antecipar, dizendo que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal, deliberadamente frívolo, oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza a que obrigava a forte censura napoleônica.(...) Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas de diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza: aberto às novidades, nele se criticam peças , os livros recém-saídos.

O folhetim-crônica do século XIX era mais longo do que a crônica atual e, na maioria das vezes, abarcava grande número de assuntos. No entanto, já era escrito em tom mais leve, apresentando enfoques humorísticos ou poéticos dos temas tratados. A própria escolha dos temas, voltada para aspectos “menos importantes” do cotidiano, já aponta para a presença do humor, da leveza, da gratuidade, tão comuns na crônica atual.

O jornal continua sendo o suporte tradicional da crônica, que prossegue contando com a mídia impressa como veículo de manifestação. Os jornais e revistas de circulação nacional, como bem definiu Vinicius de Moraes (também um grande cronista), “são como um organismo humano, onde o editorial é o cérebro: as reportagens, os pulmões, e a crônica, o seu coração” (MORAES apud BRAIT, 1980).

A crônica, como também afirmou Vinicius de Moraes, é o “biscoito fino” dos cadernos e editoriais de cultura e está conquistando novos espaços, como sites e blogs, sem deixar de ser o que sempre foi: um exercício de liberdade.

No século XIX, nossa crônica já começa a apresentar uma feição particular, já começa a ter a “cara do Brasil”, sendo formatada com características próprias, com a criatividade dos escritores do país. Nossos primeiros cronistas também foram nossos primeiros romancistas (José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis etc.), e este fato contribuiu para que o lirismo tivesse predominado na crônica desde as suas primeiras manifestações.

A crônica brasileira como a conhecemos começou com Francisco Otaviano de Almeida Rosa em um folhetim no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 02 de dezembro de 1854. José de Alencar trouxe o requinte para o gênero quando substituiu Francisco Otaviano no Correio Mercantil, em 1852, juntamente com Manuel Antônio De Almeida.

Machado Assis criou o modelo estrutural da crônica ou, mais propriamente, sua matriz. Nas crônicas machadianas, há diálogos, ironia, leitor-narrador, galhofas, humor, que serve para dizer a verdade, abertura para assuntos variados, em que cada parágrafo é uma crônica dentro da crônica.

A crônica foi um dos gêneros preferidos de Machado de Assis. Ele as escreveu aproximadamente por 40 anos, dos 16 anos de idade até quatro anos antes de morrer, em 29 de setembro de 1908. Dedicou-se a discutir o folhetim, termo que ele e José de Alencar usaram para denominar o que hoje compreendemos como crônica. Em 1859, ainda no início de sua carreira, tentando definir a nova modalidade literária, mostra, com a sua tradicional ironia, a relação que se estabelece entre o folhetinista e seu público, dizendo que as pessoas o amam e o admiram porque têm interesse em ficar bem com a pessoa que escreve.

Segundo John Gledson (1997), Machado planejava suas crônicas de forma inversa ao usual, pois não escrevia em função dos acontecimentos diários, mas em função do que prévia que iria acontecer. Ele tinha um senso político superior ao de seus contemporâneos, e a política era um fio condutor de suas crônicas, que muitas vezes têm momentos absurdos, de exageros e de comédia. Eugênio Gomes (1963) organizou as crônicas de Machado de Assis em quatro períodos:

I - 1861- 1867: Comentários da Semana (Gil e M.A.); Crônicas (Machado de Assis); Correspondência da Imprensa Acadêmica (Sileno): Ao Acaso (M.A.) ; e Cartas Fluminenses (Job).

II – 1876 – 1878: Histórias de Quinze Dias e Histórias de Trinta Dias (Manasses): Notas Semanais (Eleazar).

III – 1883 – 1889: Balas de Estalo (Lélio); A B (João das Regras); Gazeta de Holanda, em versos (Malvolio) e Bons Dias (Boas Noites).

IV – 1892 – 1900: A Semana, sem assinatura.

Machado de Assis escreveu seiscentos e quatorze crônicas. Não constam deste montante as crônicas identificadas mais tarde, nem aquelas que figuram nas seções em que se alternavam diferentes colaboradores, sob o pseudônimo comum de Dr. Semana. Seu pensamento o levava ao humor. Os fatos não eram importantes, o que importava era o artífice, tudo sendo motivo para uma crônica.

Usando pseudônimos ou assinando como Machado de Assis, concebeu ousadas experiências para a renovação desta arte, descambando muitas vezes vertiginosamente para o humor e o despropósito, estabelecendo flagrantes e curiosíssimas relações de estilo e efeito entre a crônica, o conto e o romance. São exemplos disso: Memórias póstumas de Brás Cubas, Memorial de Aires, Contos Fluminenses etc.

Sua aguda observação da sociedade de cronista-jornalista está presente na construção de seus textos. Usa exemplos da Bíblia, do cotidiano, da cultura em geral.

A polifonia aí se revela sem mascaramentos, e os simulacros, que são imitações de imitações, fazem a coerência do texto, que, mesmo com tantas vozes, comunica, por meio da ironia, seu discurso ideológico.

Outra característica da crônica machadiana é a estreita ligação entre linguagem e sociedade. Mesmo partindo de fatos que, para o leitor desatento, parecem banais, Machado não esconde sua insatisfação com uma sociedade injusta, em que os pobres (“lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada”) sempre são desamparados.

A atualidade de Machado está nas marcas do cotidiano e, inclusive, na frivolidade e efemeridade de assuntos que procura desenvolver. Essa frivolidade não deixa o texto pobre, mas leve, e o escritor usa a condensação através de metáforas e da ironia. As duas vizinhas que aparecem no texto O nascimento da crônica, de 1º de novembro de 1877, são as fundadoras do gênero, ao fofocar sobre as namoradas de um morador. Trata-se da metalinguagem da própria escritura da crônica, que se apóia em banalidades. É pela lógica de suas subjetividades que se constrói a verossimilhança.

A ironia é um exemplo do discurso bivocal, o qual se manifesta sempre sob as condições da comunicação dialógica, pois surge das várias interpretações, do dialogo (autor/leitor), da ambigüidade que continua presente nos textos da modernidade e na maioria das crônicas. Linda Hutcheon (2000) diz que a ironia é um jogo inferencial, tanto do ironista como do interpretador/leitor. Machado usa a ironia, que serve de ponte entre o escritor e o público (leitor) e obriga o leitor a interagir com o texto. O leitor é chamado pelo cronista de leitor amigo, o que constitui uma marca autoral, uma espécie de rubrica. A ironia se faz com opostos e também com o duplo sentido, em uma crítica feroz à sociedade hipócrita. Machado, por exemplo, escreve sobre o paraíso (...Adão andava baldo naipe. ) e o compara com a província, onde há alfaiates para vestir o homem, embora ele continue sem dinheiro e, por isso, nu.

A linguagem coloquial e a oratória também são marcas da crônica de Machado. O espontâneo traz para o texto uma cumplicidade entre o escritor e o leitor, que usa a fantasia e a notícia ao mesmo tempo, sem maior preocupação com a verossimilhança. Machado registra nas suas crônicas uma espécie de desestruturação, como explica Eugênio Gomes (1963, p.10): “Vê-se que o processo machadiano estabelecera uma confusão intencional; a fantasia, a crônica e o conto já não mantinham fronteira entre si. E a conciliação estava numa filosofia estética, que a crítica naturalista não podia admitir.”

Tal confusão, que está presente também na evolução de outros gêneros literários, corresponde ao fenômeno da hibridização, tão comum na crônica.

               Leia na próxima Edição

2 A IRONIA: SUA ORIGEM E TEORIA E A CAPACIDADE DE COMBINAÇÃO COM A CRÔNICA


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