sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sayonara(QUARAÍ-RS) - EDUCAÇÃO - A CRÔNICA E O ESTILO HUMORÍSTICO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO





A CRÔNICA E O ESTILO HUMORÍSTICO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO


Continuação da Edição anterior:

2 A IRONIA: SUA ORIGEM E TEORIA E A CAPACIDADE DE COMBINAÇÃO COM A CRÔNICA

A palavra ironia, na modernidade, não tem mais os significados verificados nos séculos anteriores, é apenas um acordo temporário, uma maneira de compreensão do mundo. Muecke (1995, p. 22) explica que a evolução semântica da palavra, historicamente, é o resultado cumulativo de termos, de tempos em tempos, no decurso dos séculos, inferindo, a partir do uso conceitual do termo e talvez erradamente, fenômenos que pareciam semelhantes, usando a palavra ironia sem saber ou procurar saber como ela era empregada anteriormente.

Segundo a MLA Bibliograpy, já foram list
ados 1.445 verbetes sobre ironia, e essa listagem conta apenas uma parte da história, a parte literária. Esse tópico tem sido pesquisado por especialistas em áreas tão diversas quanto lingüística e ciências políticas, sociologia e história, estética e religião, filosofia e retórica, psicologia e antropologia. Parece-nos que há uma fascinação pela ironia, quer seja considerada um tropo retórico, quer um modo de ver o mundo.

A Palavra ironia vem do grego eironeia e quer dizer interrogação dissimulada. Tem origem na arte de interrogar e provocar o surgimento das idéias.

Sócrates foi seu propulsor, segundo a tradição e o testemunho de Platão, no seu diálogo A república, de 377 aC. Platão diz que a ironia socrática era composta de questões a priori, simples e ingênuas, apresentadas pelo mestre a seus discípulos e interlocutores, mas que, na verdade, o seu propósito era confundi-los para revelar a fraqueza de suas opiniões, irritando-os e, muitas vezes, levando-os ao ridículo.

Muecke (1995) afirma também que Aristóteles, provavelmente tendo Sócrates em mente, dizia que a eironeia tendia para a dissimulação auto-depreciativa ou dissimulação jactanciosa. Isso vai ao encontro do que diz Veríssimo ao repórter Luiz Costa Pereira Jr. (2002, p.21), em uma entrevista para a Revista Língua Portuguesa, de 20 de abril de 2002, quando responde que o tipo de ironia que o brasileiro entende é a auto-depreciação com um toque de orgulho. E ele acrescenta:

É curioso. Os brasileiros estão acostumados com a ironia, nada mais comum do que duas pessoas que se amam se agredirem ironicamente, ou as pessoas dizerem o contrário do que realmente pensam, mas coloque-se isso num texto e o comum são as pessoas não entenderem. Esta é a maior ironia de todas. Se há uma técnica para escrever com ironia? Não, é só ser irônico, brasileiramente. (VERISSIMO, 2005, p.13).


Na comédia clássica grega, o termo ironia tem suas raízes na personagem Eiros, que se passava por ignorante para desmascarar o Álozon, um personagem fanfarrão, que atribuía juízos jocosos aos seus interlocutores. Já na tragédia grega, a ironia estava vinculada à frustração do protagonista, sujeito aos deuses. Esta seria, segundo Moisés (2001, p. 295), a ironia do destino.

Vera Machline (1986, p. 8) explica que a ironia entre os romanos teve sua significação restringida, particularizando o emprego dissimulado da palavra e passando a ser um fenômeno referente à linguagem verbal, ou seja, uma figura de retórica.

Na Europa moderna, o conceito foi se transformando lentamente, e a ironia passou a ser considerada, por duzentos anos, como uma figura de linguagem bem firmada e inscrita nos tratados de Retórica.

Na passagem do o século XVIII para o século XIX, a palavra ironia ganhou outros significados, sem perder totalmente os referenciais mais antigos presentes nos textos medievais e do Renascimento. A partir de então, a ironia tem natureza dupla: ora instrumental, ora observável. A filosofia amplia o conceito e a função da ironia. Quando Friedrich Schlegel diz que a Filosofia é a pátria da ironia, muda o foco da questão: agora não se fala apenas em alguém ser irônico, considera-se, também, esse alguém como vítima da ironia.

Mucke (1995, p.38-9) explica:


Para Schlegel, a ironia está ao mesmo tempo na ‘manobra ágil’ de Shakepeare e em sua ‘visão irônica’ das relações humanas. Segundo penso, ele não dá o passo seguinte de ver como ‘objetivamente’ irônico o fato de serem os homens uma mistura de qualidades contraditórias. Vimos que o conceito de ironia se estendeu, neste período romântico, para além da Ironia Instrumental (alguém sendo irônico) até incluir o que chamarei de Ironia Observável (coisas vistas ou apresentadas como irônicas). Estas Ironias observáveis – sejam ironias de eventos, de personagens (auto-ignorância, autotraição), de situação, sejam de idéias (por exemplo, as contradições internas inobserváveis de um sistema filosófico como o marxismo) – podem ser locais ou universais. Todas elas eram desenvolvimentos principais, nada menos que o desenvolvimento do conceito de Welt-Ironie, Ironia Cósmica ou Ironia Geral, a ironia do universo que tem com vítima o homem ou o indivíduo. Mas Friedrich Schlegel acrescentaria ao conceito um desenvolvimento posterior e até mais radical. Com ele, a ironia tornou-se aberta, dialética, paradoxal ou romântica.

A ironia satírica é aquela mais próxima do estilo socrático, isto é, a ironia do deboche, da degradação do ser humano, depreciativa, vulgar e barata. A ironia cética, mais próxima da modernidade, tem um tom de rancor e marcas de crueldade, corrosiva ou diabólica.

A sátira é um fenômeno muito mais geral, freqüentemente é deliberada e mais moral em suas intenções, fazendo um julgamento negativo sobre o objeto satirizado, querendo sempre ferir ou menosprezar. Segundo Massaud Móises (2002, p.470) sátira é uma:

Modalidade literária ou tom narrativo, a sátira consiste na crítica das instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. Vizinha da comédia, do humor, do burlesco e cognatos, pressupõe uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é sua marca indelével, a insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica.

Para De Nigris (2000), a sátira teria nascido com Juvenal e Horácio. Em Juvenal, seria a do homem correto que sente negativamente a sua sociedade. Já Horácio vê a sátira como tolice humana por meio do riso e não do ódio. John Dryden (século XVII), baseado nesses fatos, identificou dois tipos de sátira: a cômica (horaciana) e a trágica (de Juvenal).

Para Hutcheon, na sátira, há um registro de conduta moral negativa, o que a afasta da ironia, que não tem essa preocupação moralizante. A ironia implica em estratégias de emprego de palavras, que podem ser realizadas em dois níveis, que tiram sua significação do contexto no qual se encontra: 1. nível de superfície primária, em primeiro plano; 2. nível secundário e implícito, em segundo plano.

A significação última do texto irônico reside na superposição dos dois níveis, num tipo de dupla exposição textual.

Na crônica, a ironia é a afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar. Consiste em não dar às palavras o seu valor real ou completo, querendo significar o oposto do que se diz. É um disfarce delicado, um dizer uma coisa por outra. Quando um indivíduo usa de ironia, na maioria das vezes, não pretende ser aceito, mas compreendido e interpretado. O que diferencia a ironia do enunciado falso simples é a sinalização da contrariedade, geralmente sutil, por meio do contexto, da edição, da entoação, do gesto ou de outro sinal. A função da ironia na crônica é deixar o texto leve, levando o leitor à crítica, à reflexão e ao humor.

Nesse sentido, a ironia é um recurso usual de humor. Ela torna mais extrema a relação de oposição entre o falso atribuído e o fato verdadeiro. O riso na ironia surge de uma situação de inversão, mas a ironia não quer dizer absolutamente que a situação seja risível. Muito pelo contrário, muitas vezes ela provoca o choro. Quando percebida, a ironia estimula algum tipo de reação. Não podemos confundir o tom humorístico com a ironia. Segundo Lélia Parreira Duarte (1994, p.12), o humor, diferente da ironia, valoriza mais o significante do que o significado, acaba investindo na enunciação e menos no enunciado. A ironia, diferentemente do humor, precisa de um elemento pragmático, um objeto a atingir, enquanto aquele, o humor, busca antes o discurso e tem como base um jogo de linguagem (em que o leitor participa conscientemente de um jogo, fingindo autoconhecimento ou ignorância) que só se realiza principalmente no campo da metalinguagem.

Luís Fernando Veríssimo utiliza não só o humor, mas também a mimese irônica em suas crônicas, que é imitar o estilo ou o ponto de vista de outrem, mas o que se pretende é criticar o que se mimetiza. A intenção do que é dito é fundamental para a expressão da ironia. A presença do ironista é imprescindível, não há ironia sem ironista. Ele percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e explora as situações com enunciados irônicos. Na obra de Veríssimo, é comum verificarmos esse uso particular da ironia em suas personagens, que estão sempre imitando estilos e patrões típicos, como ocorre, por exemplo, em: O analista de Bagé, A velhinha de Taubaté etc.

Nas crônicas de Veríssimo, a ironia está muito próxima do chiste, que para o Dicionário Houaiss (2001, p. 702) é o espirituoso, o humor fino e adequado, gracejo e do cômico, que é aquilo que tem por efeito suscitar o riso ou a zombaria; ridículo, risível (HOUAISS: 2001, p. 770). Sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando-a de uma réplica contraditória, fazendo-a entender a mensagem pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo.

A ironia só pode ser entendida quando os interlocutores estão preparados para o jogo, em que o outro está pronto para escutar o oposto, de modo que não pode deixar de sentir uma inclinação para contradizer. Em conseqüência dessa condição, a ironia se expõe facilmente ao risco de ser mal-entendida, fato já observado por Veríssimo em relação ao leitor brasileiro.

Podemos dizer que o uso da ironia, desde os tempos socráticos, cumpre um papel relevante na vida quotidiana. Aparece nas convicções religiosas, na política, nas conversas despretensiosas e também naquelas que querem denotar prestígio e têm como matéria-prima principal as relações humanas. Nestrovsky (1987, p. 7) afirma: Ironia e modernidade não são exatamente sinônimos, mas as duas palavras estão bem mais próximas do que se imagina". Para esse autor, a ironia é aquele movimento que faz a linguagem se suspender ou se negar, está no fundamento de todo período moderno e também na maioria das crônicas.

Luís Fernando Veríssimo diz que mesmo a ironia fazendo parte da realidade do brasileiro, muitas vezes não é entendida; ela precisa ser situada em um contexto e sintonizar-se com certas características do leitor que, no caso do Brasil, é um indivíduo propenso a rir dos seus problemas, da situação caótica, da política e de tantas outras coisas.

A ironia é uma forma de entendimento, uma verdadeira atitude filosófica. Às vezes torna-se um caminho para a salvação de um mundo tenebroso, revela-se como forma positiva de relacionar-se com a vida. Nas crônicas de Veríssimo, é a atitude preferida. Por meio dela, o autor consegue diferenciar vários aspectos do mundo, que observa para escrever.

Em Veríssimo, a ironia abre vertentes para a crítica social e o riso, proporciona ao leitor momentos de libertação da realidade difícil e pesada, cheia de problemas financeiros e sentimentais. No livro George Santayana o la ironia de La materia , Ignácio Izuquiza (1989, p. 63) fala sobre como o filósofo americano George Santayana mostra a importância da ironia para a sociedade: “O riso é uma verdadeira terapia, uma forma de cura frente a todo o negativo que a ironia soube destacar.”

Veríssimo encontra na ironia o material que traduz um ideal democrático, conhece a tensão da substância dinâmica da vida, consegue extrair da notícia o fato simples, que aos olhos comuns passa desapercebido, materializando-o em seu diálogo com o leitor.

A existência é caótica e é por intermédio da ironia, inserida na crônica, que autor e leitor vão liberta-se das certezas antes amordaçantes, pois, no pequeno espaço que crônica ocupa no jornal ou no livro, descobrem que nunca há somente uma única verdade. É o que Santayana quando diz:

É uma fecunda felicidade porque deve abrir a outras formas de existência, uma felicidade duradoura porque se atem a pensar que a existência é sempre contingente e produto da potencialidade criativa da matéria: e é irônica porque sempre se volta contra os que pensam que uma verdade é a verdade única. (SANTAYANA, apud IZUZQUIZA, 1989, p. 78).

Luís Fernando Veríssimo mostra em suas crônicas, a relatividade da existência e das circunstâncias concretas da vida. Sendo considerado um dos escritores mais lido na atualidade, no Brasil, ele consegue sobreviver no universo literário com um acervo enorme de crônicas, um gênero tido por muitos como fadado a morrer.

O diálogo, que também é um elemento da ironia, é um aliado nas crônicas de Veríssimo, pois, na reflexão que ele realiza sobre o cotidiano as duas (crônica e ironia) formam um casamento perfeito.
Beatriz Berrini (2005, p.40) comenta:

Afinal, a palavra eironeia, significando “ interrogação “, propõe perguntas que exigem respostas, indicando claramente que a ironia alcança sua plena significação através do diálogo, que se processa graças à linguagem. A estrutura comunicativa é uma condição básica da ironia. O emissor serve-se de um modo de expressão no qual o significado autêntico contraria o sentido das palavras.

Leia na próxima Edição:

3 O CRONISTA LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

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